quinta-feira, 1 de maio de 2008

O que Isabella nos deixou

Um seminário em Porto Alegre discutiu a violência como um problema de saúde pública. Uma epidemia silenciosa, como dizia o enunciado do evento que cresce a cada dia. É impressionante como nunca o Brasil nem as autoridades tinham tratado o assunto estrategicamente, com as duas pastas - segurança e saúde - trabalhando unidas. Mas o mais grave, nos registros de violência rotineira, é que as crianças e os adolescentes estão entre as principais vítimas. Em 2007, o RS registrou 132 mortes de pessoas até 17 anos. Um quadro avassalador e sem jeito de ter volta. O menor vira criminoso por causa do meio em que vive ou ele contamina com sua criminalidade o ambiente em que mora?

Temos os conselhos tutelares abarrotados de casos, pais e filhos que vão parar na delegacia, no hospital ou no necrotério. Temos, por outro lado, a falta de estrutura nesses lugares e mais um sistema de educação precário para que possamos atender estes jovens cidadãos como deveriam. Famílias que perderam o rumo da autoridade e pais desnorteados, sem saberem por onde gerenciam a educação dos seus filhos. O ideal seria ter certeza, firmeza e segurança para educá-los longe das ruas, do roubo, do crack, da esmola, da prostituição infantil. Mas não é bem assim. As centenas de Isabella que o digam.

O telejornal Band Cidade (TV Bandeirantes, 18h50) mostrou no mesmo dia o caso de uma menina de seis anos foi abusada sexualmente por um vizinho. Fato inusitado: a mãe denunciou o caso à polícia. O homem foi conduzido à delegacia e responderá a processo por atentado violento ao pudor. Repito: a mãe foi lá e denunciou, fez ocorrência, foi no DML e depois foi para o hospital. "Eu conheço ele, mas eu não tive medo, eu fui e denunciei" - disse a corajosa senhora. Ah, se todos fossem assim e levassem até o fim a indignação e impaciência com que essas coisas que já estão estabelecidas...

A reportagem da jornalista Luci Jorge também mostrou que o HPV, Hospital Presidente Vargas de Porto Alegre, possui um Centro de Referência no atendimento infanto-juvenil que em 2006 o serviço acolheu 1.170 crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e maus tratos. No ano passado, foram 1.219 atendimentos, a maioria por abuso e agressões sexuais. Depois de exames clínicos, as vítimas são encaminhadas para tratamento psicológico. Uma demanda que às vezes nem sonhamos que possa existir.

É impressionante como este assunto é velho e ainda continua sendo pauta de seminários, congressos e nas redações. Nós, jornalistas, não paramos de falar nisso. Talvez porque o problema continue existindo e só piore. Se não melhorar, o mínimo que um jornalista pode fazer é indignar-se e continuar a tratar do assunto.

Bebês, crianças e pré adolescentes precisam ser criados com educação, carinho e afeto. Não precisa ser médico para saber que o ambiente da criança é longe da violência, da agressão covarde e do dano psicológico sem volta. Ou alguém acha que uma criança abusada, machucada ou assediada mesmo moralmente terá mente livre e saudável para o resto de sua vida?

Temos, portanto, um quadro silencioso e anônimo de diversos casos isabela espalhados pela nossa sociedade. Todos os dias. Um relatório da UNESCO chega a confirmar que uma criança é abusada ou maltratada a cada hora no Brasil. Isabella foi mais uma, mas existem muitas outras. Mais pobres ou mais ricas. Mais velhas ou mais novas. Algumas BEM mais novas.

Eu sei que ninguém mais agüenta ouvir no caso Isabella. Mas tem muita gente querendo saber o que acontece com pais, irmãos, irmãs, padastros, madastras, tutores, tios, tias e patrões que abusam de menores. Pedófilos, torturadores, estupradores, abusadores, malucos, sádicos. Além de virarem notícia, tem que ir pra prisão, serem punidos exemplarmente para que não criem seguidores. Está aí o trabalho da imprensa: fazer o estaderlhaço para evitar que tudo se esqueça na poeira na injustiça.

Que maus pais sejam repreendidos severamente, pagando com indenizações ou horas de prisão, para que nenhum pai mais pense em usar a violência contra crianças. Para que nenhuma criança mais seja vítima dessa covardia. Para que nenhuma criança seja privada daquilo que lhe é mais importante: a presença de um pai e uma mãe que lhe amem. Nem que para isso, paradoxalmente, tenhamos que tirar do pai e de uma mãe, a mesma coisa: o direito e a honra de criar cidadãos de bem para o mundo.

Renato Martins